terça-feira, 22 de julho de 2008

UMA FACA SÓ LÂMINA

A

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
[joão cabral de melo neto]

uma faca só lâmina (1955), de joão cabral de melo neto, é um livro com onze estrofes sobre uma faca, a lâmina de uma faca, que depois se revela uma metáfora do vazio. para o poeta, o vazio corresponde à uma lâmina afiada de faca presente no corpo como parte do seu esqueleto, uma lâmina cortante, com fome de presenças. essa lâmina afiada às vezes pode não cortar o corpo, mas, por fazer parte do seu esqueleto, mais cedo ou mais tarde vai cortá-lo, nele destilando "azia" e "vinagre". ironicamente, o vazio é definido como uma presença. uma faca. a lâmina de uma faca, no corpo. o que temos, assim, são instantes em que a fome da lâmina se aplaca e o corpo não sente a angústia provocada pelo seu corte.

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eu procurei esse livro no google e eu até coloquei o link aqui, mas eu conferi o poema que eu tinha transcrito aqui no livro duas águas (1956) e, além de faltar uma parte, faltavam dois verbos. se alguém quiser ler esse livro, fica a dica que não é confiável ler na internet.