quarta-feira, 18 de novembro de 2009

a revolução antiescatológica

[do livro o mal-estar da pós-modernidade]

Significativamente, a modernidade não produziu outro símbolo para tomar o lugar da sinistra figura da morte; [...] a própria morte perdeu sua unidade do passado - acha-se, agora, dissolvida em minúsculas, mas inumeráveis, armadilhas e emboscadas da vida diária. Tende-se a ouvi-la batendo, agora, de quando em quando, diariamente, em comida rápida e gordurosa, em ovos contaminados de listeria, em tentações ricas em colesterol, em sexo sem preservativo, em fumaça de cigarro, em ácaros de tapete que causam asma, "na sujeira que se vê e nos germes que não se vêem", na gasolina carregada de chumbo e nos gases desprendidos do chumbo, e assim imundos, na água da bica tratada com fluoreto e na água não tratada com fluoreto, no exercício de mais e de menos, em comer em demasia e fazer regime em demasia, em ozônio demais e no buraco da camada de ozônio. [...] [Bauman]

é, a morte não é mais "um esqueleto de veste preta brandindo a foice, que bate à porta apenas uma vez e cuja entrada não pode ser impedida". quando criança, eu tinha esse medo da morte, por pensar a vida em função da morte, depois da morte. um medo aumentado (instigado?) pelas idas à igreja. essa obsessão com a morte nunca foi só minha. pelos poemas barrocos que já li, imagino o dia-a-dia de quem viveu no século XVII, porque, com essa cultura do pecado, da salvação após a morte, a vida devia ser angustiante, afinal, na mentalidade da época, decidia a ida das pessoas ao céu ou ao inferno depois da morte. o que a modernidade fez foi por um fim nessa obsessão com a vida após a morte, fazendo com que as pessoas focassem o "aqui" e o "agora", ou seja, as "preocupações terrenas", de um jeito que a figura medonha da morte perdeu o lugar. a morte já não é essa "espécie de acontecimento extraordinário", que dá um sentido aos "acontecimentos ordinários" de toda uma vida, mas uma "ocorrência diária, bastante familiar e comum para despertar horror ou quaisquer outras emoções fortes". e as nossas incertezas, assim, não se relacionam mais com o que vem depois da morte, mas com o que acontece (e ainda vai acontecer!) na vida.